sexta-feira, 23 de março de 2018

carrão

surreal como depois de tantos anos, observar a chuva nunca perde seu apelo. visualmente falando, é deslumbrante ver os pingos da chuva sendo vertidos da imensidão celestial e explodindo no solo da nossa terra. sentir aquele cheiro característico de quando a água proveniente do céu toca o solo sobe pelo nosso nariz, a sensação de frescor que somos imergidos enquanto a terra é inundada... isso nunca perde o encanto. ouso dizer que conforme o tempo passa, o encanto por poder observar esse fenômeno da natureza nunca diminui. era exatamente como pensava Olga. Olga era conhecida por viver sonhando acordada constantemente, mas as pessoas que a conheciam não eram muitas. Olga gostava de viver sem a companhia de muita gente, ela tinha uma paixão secreta por ser "invisível". estava quase sempre fazendo algo, mas quase nunca acompanhada. em sua cidade, havia uma dessas pontes que são obras-primas da arquitetura, e Olga adorava permanecer por muito tempo observando o que acontecia pela cidade. os pedestres andando apressados, os carros que cometiam infrações seguidamente, os pássaros que viviam estáticos pousados por sobre a fiação que deixava a cidade mais feia do que as infiltrações nos prédios acusavam... Olga tinha a sensação de que, se fosse perguntada, saberia apontar detalhes minuciosos a respeito das construções ao redor daquela ponte. mesmo com o peso de todo aquele concreto, ela sentia leveza ao estar por entre aqueles pilares do labirinto urbano onde ela vivia.

não é comum encontrarmos pessoas que prefiram estar sob uma chuva torrencial - até mesmo pelos riscos que ela nos oferece. mas especificamente naquele dia, Olga desejou aquilo. saiu de seu trabalho e caminhou pelos mais desconhecidos caminhos de sua própria cidade sob a chuva que caia. seu andar lento e o clima temporal geravam a sensação de que ela mesma acabaria por se esquecer de si - nesse ponto alto de seu momento paradoxal, ela decidiu que se entregaria às possibilidades de conhecer o novo, de vivenciar o novo sem medo do que ele pudesse lhe oferecer. e então, Olga decidiu tentar deixar de ser invisível. esse romper de sua área de conforto a fez sentir que então teria se tornado numa releitura de uma pessoa pintada por Pablo Picasso - a sensação de achar que não se pode ser charmoso e encantador diante de olhos que não te olham com a frequência necessária para que você não se sinta estranho aos outros. mas ao mesmo tempo em que refletia sobre isso, é necessário a permissão de se sentir estranho para estranhos, para que esse processo seja digerido e processado de maneira a que se entenda que nada é comum para ninguém, e que se deve sentir esse frio na barriga diante do novo, para que diante de um iminente perigo, não se reaja passivamente e se permitir colocar diante de uma situação dessas não era exatamente o plano de Olga.

após alguns meses de planejamento, Olga se preparou para esse tipo de interação tão desconhecido à ela então. e ela conheceu pessoas. vivenciou todos os tipos de contato. todos. desde pessoas que puderam ensinar novas lições e agregar ao seu até então já vasto campo de conhecimento, até as pessoas que a ensinaram sobre o tipo mais degradante do sexo. ela se permitiu viver todas as experiências que a ofereceram. uma das mais marcantes que ela viveu foi sem dúvidas o prazer do seu primeiro cigarro. ela tossiu, sentiu uma pequena falta de ar, mas se permitiu experimentar e descobriu no par que a ofereceu essa oportunidade o que em tese lhe faltava para acompanhar suas tardes observando a chuva que nunca tinha parado de cair, mesmo que sua intensidade não fosse constante. ela fumou muitos cigarros na ponte em que gostava de permanecer. quem a ensinou a fumar tinha inclusive ensinado à ela o truque para se poder fumar mesmo durante a chuva - e era assim que ela o fazia, como se fumasse há muitos anos. até mesmo ao soltar a fumaça do cigarro, Olga o fazia com classe. era como se em meses, ela tivesse deixado de ser uma pessoa inocente para conhecer tudo o que havia pra se conhecer no mundo (ou pelo menos naquela cidade). mas após alguns meses, ela teve o estalo mais esperado até então: em agradecimento a pessoa que havia a ensinado tal hábito (que por mais lânguido que fosse, era algo gostoso de se fazer) a passar algum tempo em sua companhia observando a cidade a partir da ponte onde Olga sempre passava boa parte do seu tempo. e o convite foi aceito. e os dois decidiram deixar, mesmo que de forma velada, um pequeno cinzeiro camuflado por entre os blocos de concreto que concluiam a obra, e um pequeno ponto queimado na ponte, feita pela bituca dos inúmeros cigarros que fumavam juntos. não se sabe ao certo o que há entre Olga e essa pessoa, mas se você passar por aquela ponte num dia de chuva, as probabilidades de você avistar Olga na companhia dessa pessoa - que gera nela um sorriso bem bonito.

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

I

É um conflito constante que domina a mente de quem se envolve em algum tipo de encrenca, como se nunca houvesse repouso para o cérebro. Por mais que você se sinta certo da isenção de qualquer tipo de culpa, a sensação é de um alarme constante estar ressonando pelas paredes da sua cabeça. É um tanto desesperador, e particularmente eu posso dizer que sinto como se estivesse me vendo escorrer pelas minhas próprias mãos. O desespero individual faz com que nada que você planeja tenha algum tipo de sucesso - não importa o quão bom você seja na hora de expor seus sentimentos, a sensação de falha te segue de forma irritante. E é a partir desta linha de pensamento que eu venho ao mais silencioso lugar que conheço, para vomitar todas estas coisas que tem me estragado internamente.

Tudo tem início quando você entende que tem dificuldade de lidar com situações que, para a maioria das pessoas, é algo corriqueiro, do dia-a-dia. Entender que existem dificuldades que, pela sua autossuficiência não serão solucionadas, gera em você o desânimo de buscar ajuda externa. É como se você estivesse próximo de inúmeras pilastras, mas elas não inspirassem nenhum tipo de confiança pra que você se apoie nelas. Eu me encontro numa situação dessas. Eu sempre estive habituado a manter a calma e buscar soluções dentro de mim mesmo contras as dificuldades provenientes de universos vizinhos aos meus, e isso faz com que você se sinta sábio o suficiente pra buscar essas mesmas fórmulas de resoluções dentro do mais profundo de si mesmo, e quando essa busca não te rende nada positivo, seu sistema entra em parafuso. É ai que reside a nascente de um rio que corre dentro de você, a solidão. Nasce num filete imperceptível, e quando se nota, dividiu a terra, encharcando um terreno fértil com incertezas e impurezas - que nascem por si mesmas, dentro de si mesmo por influências externas.

E assim como em vários outros momentos da vida, a beleza surge no momento mais improvável, como anáforas sobre amor que brotam entre poesias que abordam a tristeza em voga nas nossas vidas. É como encontrar vontade de viver por entre raios de morte que caem ao nosso redor. É muito triste viver dessa forma, sentindo medo constante - mesmo sem ter motivo para senti-lo.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

salvação

por que eu insisto nessa situação?
eu não consigo respirar
muito menos dormir ou sonhar
estou submerso numa densa confusão
como sair desta condição?

por que eu gosto dessa sensação?
eu até consigo me alegrar
e até consigo, com certo esforço, trabalhar
este desdobramento me afeta a visão
mas sigo firme na mesma direção

por que eu não encontro salvação?
se a minha vontade é me libertar,
eu necessito me renovar
mas aonde fica a tão desejada razão,
quando o assunto afeta o coração?

mundo

o mundo
tem se tornado tão imundo
que sinto que irei derreter
me sinto pesado como o chumbo
já me considero moribundo
sei que irei morrer

o mundo
tem me deixado tão imundo
isso tem me feito perecer
como o solo contaminado pelo chumbo
que se torna moribundo
nada mais irá florescer

o mundo
é imundo
o que iremos fazer?
o chumbo
te faz moribundo
você quer morrer?

domingo, 15 de dezembro de 2013

sumaré

cheguei à estação do metrô, com a mente dançando em meio a confusão de pensamentos sobre vários assuntos. esta época do ano conseguiu me dar vários nós. os acontecimentos ao longo do ano, as idas, as vindas, as despedidas, os reencontros... tudo isso gerou um enorme vórtex que tem sugado o melhor e o pior que existe em mim, me causando enjôos inexplicavelmente bons. a mescla de sensações que tenho experimentado não tem sido nociva, mas admito que alguns sentimentos que consegui reprimir ao longo de anos, voltaram à tona em poucas horas, e os motivos para isso são totalmente desconhecidos. eles surgiram. reapareceram. como luzes de uma decoração de natal. me senti como uma árvore, que, ao longo do ano, está sujeita as intempéries da natureza e que passa desapercebida apenas como um adereço sem importância. mas durante esta época, ela precisa estar adornada. de alguma forma, me sinto assim. ao longo do ano, me senti como parte de uma mobília empoeirada, que era mantida por comodidade. mas nesta época, estão tentando colocar algo que reluza dentro de mim, e essa sensação de estar sendo engolido por um furacão de emoções me assusta.
esfriei meu coração, sentei-me no banco da plataforma, e decidi que passaria as próximas horas me dando o direito de assistir a vida passar em forma de vários trens em sequência. alguns passavam lotados, alguns passavam vazios. do local onde estava sentado, tinha a visão para a avenida que atravessa a estação pelo lado de baixo, com vários carros em velocidade média desenhando o caos diário que se instaura em horários pré-determinados. mas naquela hora, havia algo belo naquilo. a avalanche de sentimentos me invadira novamente, porém desta vez determinando uma paz inabalável, que chegava a ser incômoda, por me causar tanto relaxamento em se tratando de uma vida que se atola de problemas e preocupações. vi o céu nublado, o sol relutando em se fazer presente a partir de poucos raios que incidiam sobre os inúmeros prédios que circundam aquela área, a brisa primaveril que insistia em zunir por entre as paredes de concreto que sustentavam aquela estação. o dia se arrastava. cheguei a ver borboletas sobrevoando as poucas flores que contrastavam com o cinza predominante, e mais uma vez, a melancolia se apoderou de mim.
as aproximações dos trens causavam um barulho ensurdecedor, e chegou a um ponto que notei que todos os trens que circulavam naquela linha já haviam passado por mim, tanto indo quanto voltando. haviam se passado quase 3 horas que eu estava ali. esta época me deixou, de alguma forma, com o interruptor desligado. era como se tudo o que eu fiz ao longo de um ano todo tivesse sido inútil, e que eu teria de recomeçar do zero. o recomeço não me assustava, mas me deprimia lembrar que todo o esforço que fiz foi em vão. meu olhar de encontro ao céu que brilhava apesar das nuvens deixou minha visão turva, meio amarelada, como se tudo não passasse de uma fotografia antiga. eu já não sabia como agir diante desse marasmo, mas decidi que deveria seguir a vida que me esperava. e assim o fiz: troquei de plataforma, e fingi ter pressa quando o trem se aproximou da plataforma quando eu ainda descia as escadas. passaram-se duas estações e eu saltei do trem, subi as escadas e andei pelas calçadas como se tivesse sido imergido numa água renovadora, apesar da minha visão ainda estar sépia. senti várias vontades naquele momento, mas era necessário fazer algo. juntei algumas moedas, comprei um copo de café, filei um cigarro de um senhor educado que aparentava ter pressa, e a vida prosseguiu seu caminho (a minha, pelo menos). a certeza era de que, apesar da minha vista estar monocromática, a certeza de que ela voltaria a ter cores era certa. e segui em frente.

terça-feira, 3 de setembro de 2013

margaridas

a chuva cai insistentemente
o vento sopra displicentemente
e por essas se nota a temperatura do meu corpo,
me sinto quente.

a chuva cai extraordinariamente
me faz admirá-la como se eu fosse um demente
mas eu não me importo de ser ofendido de novo;
mostrarei meus dentes.

o vento passeia indecentemente
levanta os vestidos e desconcentra as mentes
entre um jardim de margaridas, me sinto solto,
não estou mais doente.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

ondas

eu sento à beira-mar,
apenas para ouvir as ondas a ecoar
e a meu ver,
prefiro ver você
e a sua voz a ressoar

e o rádio a chiar
sem conseguir pelo menos uma estação sintonizar,
ao entardecer,
prefiro ouvir você
e o lindo brilho do seu olhar

resolvo me espichar,
sentir as ondas do sol a me esquentar
mesmo sem merecer
prefiro sentir você
e a sua pele a me tocar

e volto a observar
as ondas a rolar
com o sol a se esconder,
sinto a falta de você
ao meu lado a me encantar.